No seu novo livro, o neurologista Oliver Sacks investiga as deficiências visuais causadas por danos no cérebro para falar de uma das maiores vontades do ser humano: comunicar-se.
Alguns cientistas têm a especial capacidade de explicar – com clareza – o que fazem –, por mais difícil que possa parecer o seu objeto de estudo.
Em seu mais recente livro –
O olhar da mente –, o neurologista Oliver Sacks prova, mais uma vez, que faz parte desse seleto grupo de pessoas que consegue transcender qualquer sugestão de que ciência é "algo frio".
Oliver Sacks consegue transcender qualquer
sugestão de que ciência é “algo frio”
O cientista inglês, em sua 11º livro, investiga novamente casos médicos raros. Como já fizera no famoso
O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, Sacks visita o mundo de pessoas comuns que desenvolveram características raras – todas elas, de alguma forma, têm a ver com alguma disfunção no cérebro.
Em O olhar da mente, Sacks conta a história de pessoas acometidas por derrames, tumores e outras doenças do cérebro que afetaram consideravelmente a visão ou a capacidade de reconhecer as coisas do mundo – por mais que a estrutura ocular delas tenha continuado intacta, o modo de enxergar e reconhecer fora alterado.
São histórias únicas, quase alegóricas, como a da pianista que perde a capacidade de ler e reconhecer partituras, do escritor que não consegue mais ler e da pintora que, acometida por uma hemorragia cerebral, viu-se afásica, ou seja, perdera a capacidade não só de falar, mas também a de se expressar por meio de qualquer linguagem.
Esse último caso é, talvez, a essência que liga as histórias que Sacks conta no livro. Pois, embora a mulher (o neurologista a chama de Patricia H.) enxergasse ainda perfeitamente, ela não tinha mais a capacidade plena de se comunicar com o mundo. Emitia sons, mas não falava. Não pedia, grunhia.
A sua luta para conseguir se adequar à doença é também a luta maior de todos os pacientes, inclusive daqueles que perderam totalmente a visão. O maior dos males, no livro de Sacks, não é não enxergar, e sim perder a capacidade de se comunicar com o mundo.
Daí vem o desespero do escritor que, depois de décadas escrevendo e lendo, perdera totalmente a habilidade de ler e boa parte da capacidade de escrever. E também explica a felicidade da pianista que, mesmo sem conseguir reconhecer o que estava escrito na partitura, tinha recobrado a confiança em tocar músicas de ouvido.
Sacks, o ser humano
Curiosamente, o único caso do livro em que não houve uma lesão no cérebro – e sim no olho – aconteceu com o próprio Sacks, que descobriu em 2005 um melanoma em uma das vistas. Com medo de o câncer se espalhar, Sacks escreve em seu "diário do melanoma": "O New York Times de hoje traz fotos e histórias de várias personalidades que morreram em 2005. Estarei na lista em 2006?"
No entanto, em vez de ceder ao próprio medo, Sacks desenvolveu uma espécie de obsessão-fascinação pela doença e passou a testar a própria visão o tempo inteiro, durante alguns anos pós-cirurgia, até que tudo voltou praticamente ao normal.
Em 2009, porém, Sacks teve um derrame no olho, decorrente da radiação a que fora exposto no tratamento, e passou a enxergar embaçado. O 'embaço' tirou sua capacidade de enxergar perifericamente e, hoje, o neurologista não tem sua capacidade de ver tridimensionalmente afetada.
Sacks tem os mesmos sentimentos dos personagens de seu livro: o temor e a esperança
O "Sacks paciente" continua o médico curioso e genial que já conhecemos, mas uma outra faceta revelou-se: o de um doente medroso, quase hipocondríaco, consumidor contumaz de soníferos e remédios para dormir; enfim, um ser humano.
E mais: no fundo, Sacks guarda o mesmo medo e a mesma ambição de todos os personagens de seu livro, que são: o temor por perder a capacidade de se comunicar de forma plena com o mundo (o cientista pergunta-se o tempo inteiro: "como será não conseguir ler, escrever, como seria não reconhecer o rosto de uma pessoa?") e a esperança de que, de alguma maneira, corpo e cérebro adaptem-se a uma nova condição, de modo que a vida, caso não volte a ser como antes, seja tão instigante e interativa quanto.
Nesse sentido, o último capítulo do livro é lindo e simbólico, pois conta como alguns cegos encaram a deficiência não como chaga, mas, às vezes, como dádiva – já que o cérebro e sua famosa plasticidade permitem que os outros sentidos fiquem mais apurados, tornando o "estar no mundo" mais verdadeiro.
Quanto da nossa visão é 'apenas' uma criação do cérebro? Essa pergunta, feita à exaustão por Sacks no livro, leva instintivamente a uma nova questão: o que é a busca do neurologista senão uma tentativa de medir a importância de "estarmos no mundo"?
O olhar da mente
Oliver Sacks
São Paulo, 2010, Companhia das Letras
232 páginas – R$ 44,00
Tel: (11) 3707-3500
Thiago Camelo
Ciência Hoje On-line